A especialista em neurociência Camilla Mamede explica como o cérebro transforma repetição em convicção e o papel das redes sociais nesse processo.
No universo frenético das redes sociais, onde as notícias correm mais rápido que a capacidade humana de checar um fato, uma pergunta ecoa entre cientistas e comunicadores: por que acreditamos em algo, mesmo quando é mentira?
A resposta, segundo a especialista em neurociência do comportamento Camilla Mamede, está nas engrenagens invisíveis do cérebro e em como ele processa o que é familiar.
“O cérebro não é movido só por fatos, mas por fluência”, explica Camilla. “Ele não pergunta inicialmente ‘isso é real?’, mas sim ‘isso é fácil de entender?’”.
Estudos do William James Center for Research, conduzidos pela professora Teresa Garcia-Marques, mostram que a fluência cognitiva, ou seja, a facilidade com que processamos uma informação, cria uma sensação de familiaridade.
E o cérebro traduz familiaridade como credibilidade.
Em outras palavras, quanto mais uma ideia é repetida, mais confortável ela parece. E o conforto, nesse caso, é o caminho mais curto para a convicção.
O palco perfeito para a mentira: as redes sociais.
Nas redes, esse mecanismo encontra terreno fértil. “A fluência acontece de forma multiplicada”, diz Camilla. “A mesma ideia aparece em diferentes formatos, um post, um vídeo, um meme, uma conversa no WhatsApp, e o cérebro registra tudo isso como repetição.”
Cada nova exposição reforça a sensação de familiaridade, tornando a mensagem mais convincente, mesmo que seja falsa.
“O cérebro não analisa a origem nem a veracidade, ele reage imediatamente à sensação de já ter visto aquilo antes”, completa.
Assim, quanto mais vezes algo é visto, mais verdadeiro parece ser, mesmo que seja uma mentira perfeitamente embalada para circular.
Acreditar em desinformação não tem relação com inteligência.
“Não é um erro de raciocínio, é uma resposta cognitiva natural”, explica Camilla. “Todos nós podemos ser afetados, especialmente quando estamos emocionalmente envolvidos com o tema.”
O cérebro confia mais no que soa familiar e, principalmente, no que confirma o que já acreditamos.
É aí que surge o perigo: a “ilusão da verdade” se mistura às nossas crenças, memórias e experiências, aquilo que Camilla chama de nossas verdades internas.
“Somos um conjunto de memórias respondendo ao presente”, diz. “Por isso, o pensamento crítico é essencial: ele interrompe o automatismo da crença e nos obriga a pensar antes de concordar.”
Por que compartilhamos o que nem sabemos se é verdade?
Se acreditar é neurobiológico, compartilhar é emocional.
“As pessoas compartilham não para informar, mas para pertencer”, explica Camilla. “Na essência, também é uma forma de dizer ‘eu sinto isso também’.”
Quando um conteúdo é familiar e emocionalmente carregado, o cérebro o interpreta como seguro e a dúvida dá lugar à ação.
“A familiaridade reduz a hesitação e a emoção acelera o clique”, pontua.
O resultado é explosivo: emoção e fluência geram desinformação em alta altíssima velocidade.
“A mentira se espalha não porque engana bem, mas porque soa bem”, resume Camilla. “E no mundo digital, a velocidade da emoção sempre vence a complexidade da reflexão.”
Pensar virou ato de resistência.
É possível se proteger, mas exige consciência e disposição para o desconforto.
“Sentir que algo é verdadeiro não significa que seja”, alerta Camilla. “A fluência cognitiva é uma ilusão de verdade que o cérebro interpreta como certeza.”
O antídoto é simples, mas exige prática: pensar antes de concordar.
“Quando avaliamos familiaridade e veracidade ao mesmo tempo, o efeito diminui. O pensamento deliberado é o antídoto”, explica.
E completa com uma reflexão que resume o desafio da era digital:
“A verdade dá trabalho. E é por isso que tanta gente prefere a mentira confortável à dúvida incômoda. Em tempos de overdose de informação, pensar virou um ato de resistência.”
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Sobre a especialista
Camilla Mamede é especialista em Neurociência do Comportamento, mentora de líderes, professora e palestrante internacional.
Conhecida como “Arquiteta de Gente”, une ciência e prática para ajudar pessoas e líderes a entenderem o próprio cérebro, se reconstruírem e transformarem comportamento em resultado com clareza, propósito e alta performance, sem sobrecarga.